terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Por que ler mais escritoras?

O projeto Leia Mulheres existe para tentar minimizar o abismo que há na diferença do tratamento dado a homens  e mulheres não só no mercado editorial, mas no universo literário como um todo. É uma ideia simples, mas sobre a qual de vez em quando surge alguma polêmica. 
Lemos mulheres não porque nos interessemos em *temáticas femininas*, mas porque mulheres são menos publicadas, menos premiadas, menos lidas, menos respeitadas e, sobretudo, menos estimuladas a escrever.
Não é raro ouvirmos histórias de escritoras que recorrem às abreviações de seus nomes ao serem publicadas porque, segundo o senso comum, apenas mulheres se interessam pelo conteúdo produzido por outras mulheres e isso significa, de partida, 50% a menos de possíveis leitores de uma publicação que traga um nome feminino na capa. Foi o caso de J. K. Rowling, escritora britânica autora da série Harry Potter que, depois de diversas recusas, foi publicada com o pedido de seu agente literário de que abreviasse seu nome. Segundo ele, meninos não leriam um livro escrito por mulher.
Quando escrevem, na maioria das vezes, as escritoras estão condenadas a serem um nicho da literatura. Enquanto homens escrevem histórias clássicas e estão aptos a fazer a literatura dita universal, resta às mulheres o estigma da Literatura Feminina, sejam quais forem os temas que suas obras abordem.
Aparentemente, nenhuma mulher escapa de escrever sob o signo do seu Olhar Feminino. Isso me faz lembrar de quando dei a painho a notícia de estar organizando em São Luís um grupo de leitura para ler somente escritoras mulheres. Ele me falou: "Que bom, filha, vocês vão ler literatura feminina? Muito bom!" ao que o respondi: "Não, painho, não é literatura feminina, será literatura feita por mulheres". Tenho certeza de que ele não percebeu a diferença, mas esse pequeno diálogo é bem significativo.
Me lembra também que na FELIS (Feira do Livro de São Luís) do ano passado houve uma mesa de debates intitulada "Nova literatura brasileira: olhares femininos” cujas debatedoras foram Simone Campos, escritora e tradutora do Rio de Janeiro, Jorgeana Braga, poeta e escritora maranhense e Micheliny Verunschk, historiadora e escritora pernambucana. De cara me incomodou bastante o fato da única mesa composta somente por mulheres do evento trazer justamente o ponto de vista feminino como chave da discussão, enquanto nenhuma mesa composta por homens citou essa entidade mística que ninguém nunca viu, nem conhece, chamada olhar masculino.  Andréa Oliveira, a mediadora, iniciou a conversa levantando esse questionamento e consultando as três escritoras sobre a possibilidade de largarem mão do tal olhar feminino para analisarem a literatura brasileira contemporânea e ponto, no que todas concordaram.
O debate correu maravilhosamente bem até que no final o microfone foi aberto às perguntas da plateia. Não lembro como, mas a questão do Olhar Feminino foi levantada novamente e um poeta ludovicense, ao dar sua opinião, disse ser natural que mulheres falem mais sobre sentimentos que homens e que não saibam construir personagens masculinos verossímeis pois lhes falta testosterona.
Cara, ó as merda que a gente tem que ouvir.
Recuperada da náusea, imaginei cá comigo o nome da mulher que teria escrito Ana Karenina para Tolstói. Aliás, tenho uma dúvida, essa lógica alcança também os homens e os impede de construir personagens femininos complexos e bem estruturados ou a falta de estrogênio não afeta sua ficção como a ausência de hormônio masculino afeta as mulheres?
Nunca pensei em um dia ter de escrever sobre tamanha obviedade, mas esse comentário – ratificado por outros homens da plateia – mostra o contrário.
O artista não possui sexo e escrever, aliás, a criação de um modo geral, é um exercício de humildade e empatia no qual quem cria reserva sua identidade num canto para dar espaço e voz ao que pretende criar.
Acredito sim que, no caso da literatura, hajam duas categorias de escritores, mas elas não são as de homens e mulheres, e sim as de bons e maus ficcionistas. Aos homens e mulheres que tentam e não conseguem criar personagens verossímeis, complexos, plausíveis, não faltam hormônios e sim técnica, talento, exercício, inspiração, ou o que o valha.
Restringir escritoras à categoria de gênero é dizer sem palavras que a voz da humanidade pertence aos homens. O exercício de ler mais escritoras é ir de encontro a essa aberração. Num universo que, como dito acima, publica, premia, lê e estimula menos as mulheres que os homens, tomar a consciência de tais coisas e agir para revertê-las é o mínimo que podemos fazer. O caminho é longo.
Há quem diga que não deveríamos ler gênero e sim ideias, e que preterir a obra de homens em relação às obras das mulheres é cair no equívoco estar excluindo e discriminando homens, praticar a mesma coisa que se pretende combater.
Discordo completamente.
Nós lemos gênero sim! Basta cada um de nós analisar a própria estante ou o próprio histórico de leitura: nós lemos homens (brancos, europeus, heterossexuais...). Nossas estantes refletem todo um processo histórico que cuidou de manter mulheres afastadas de um possível desenvolvimento e produção intelectuais e as relegou aos papeis domésticos e da maternidade. Analisando rasteiramente, vem daí a diferença abissal de quantidade de homens e mulheres na literatura (e não só nela). Estimular, publicar, ler e premiar majoritariamente homens é apenas a manutenção de uma tradição misógina desde sua raiz. E é por isso que o Leia Mulheres não pratica o que pretende combater, pois há toda uma estrutura de desigualdade que privilegia e prestigia homens há séculos. Trabalhar para dar às mulheres um espaço que NUNCA deveria ter sido exclusivamente masculino é qualquer coisa menos discriminar homens. Aliás, é desonesto dizer que sim.
Há muito chão pela frente e minha geração provavelmente não vai ver nenhuma grande mudança nesse quadro. Mas haverá o dia em que o homem não mais será o ponto de referência através do qual olharemos as mulheres (também na literatura). Terá chegado finalmente o tempo de ler ideias, não gêneros. Até lá, vamos sim abrir espaço para escritoras nas nossas estantes e cabeceiras, nem que seja à base do chute na porta. Vamos colocando os tijolinhos que pudermos construção desse futuro que talvez ele chegue mais rápido.